sexta-feira, 24 de junho de 2011

Gonçalves

A noite foi gelada, no céu limpo não há espaço para o negrume azulado,
pois as estrelas brotam no seu intermitente piscar bordando de cores o
véu da vigília. O sol ainda não se espreguiçou no horizonte, mas já
emite raios de bocejos e as siriemas grasnam a sua conversa matinal de
como passaram por mais essa prova de vida. O dia vem surgindo e
envelhece a noite, deixando a ramagem branca como prova da passagem do
tempo.
O orvalho congelado das araucárias aos poucos vai se esvaindo em
calor, regendo uma sinfonia de gotas sem chuva a bater no solo. O
vento barítono sopra seu ar perfumado, sacudindo as copas das árvores
centenárias como ondas batendo na praia. Os pássaros se agitam,
competem nos seus dialetos sonoros saudando e acordando outros
animais.
O ar se delicia com a fumaça branca das chaminés dos fogões à lenha,
trazendo à lembrança a casa de nossos avós, os tachos de cobre para
fazer doces, as panelas de ferro grudando o arroz e borbulhando o
feijão com tiras de couro suíno. O aroma do café no bule afasta os
últimos resquícios de sonolência dos humanos, degustando a bebida em
canecas de ferro fundido e debulhando o assado de fubá em palhas de
milho. O leite espumante garante a nutrição e o despertar, com a
manteiga derretendo-se no pão quente artesanal.
O cheiro de mato preguiçoso, molhado da chuva que não caiu, indica as
trilhas que levam para cachoeiras, águas que descem por entre pedras
polidas, cristalinas e geladas, banho rejuvenescedor na terra de rasos
e olhos d'água que não tem fim neste pedaço da Serra da Mantiqueira.
Sol a pino, hora de experimentar a polenta frita e recheada de
mussarela do Chiquinho, o tutu inigualável da Vilma, as delicías
mineiras do Toninho sob a vigilância da Pedra do Forno, o risoto de
pinhão do Demeter na Roça, e caminhar depois, muito caminhar para deixar o sabor
virar apenas energia.Um café no Bar do Marcelo é desculpa para visitar
sua adega, tão repleta de opções como a de qualquer centro urbano, e
sua prateleira de cachaças de todo o país.
A tarde é de passeios, de compras e conversas ao pé da serra,
acompanhados de chocolate quente e biscoito fofo, enquanto uma nova
noite nasce, estendendo sua escuridão convidativa para a lareira dos
Sabores da Mantiqueira, com suas sopas, tortas e petiscos pra lá de
trem bom sô, enquanto as estrelas de animam a repetir sua jornada de
fogos de artífício.
Lá pelas tantas, as pessoas se aninham em seus recantos, no leito
trocam seus calores sob a doce música do silêncio, quebrado, aqui e
ali, por um latido, um miado, um gemido, enquanto mais uma noite vai
se tornando senhora da situação.
Edman Izipetto
24/06/2011
Para completar, Milton Nascimento cantando as coisas de Geraes...

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Politicamente correto

Tenho muito cuidado com as palavras - sei o que uma palavra certa dita na hora imprópia pode causar - porque tive o privilégio de estudar em escola pública que ainda tinha bons, idealistas e guerreiros professores (hoje são guerreiros apenas, com raras exceções), e também por ler muita literatura na minha adolescência (hoje estou a dever neste quesito), então sei o que elas significam. Mas por andar como artista, "aonde o povo está", percebi que existe um abismo entre os verbetes dos dicionários e o uso, pela grande maioria da população, das palavras.
Aqui um parenteses no significado de povo, geralmente empregado, propositalmente, para designar gente que levanta antes do sol nascer, pegar de duas a três conduções lotadas, trabalhar pela sobrevivência, e retornar à noite, ou madrugada, no que chama de casa, e este é um exemplo do verbete e de como são usadas estas sílabas. Povo aqui é todo mundo mesmo, desde o morador de rua até grandes empresários e poderosos, gente que toca a vida, nas suas possibilidades e limitações, ou não, de aproveitar o que a vida moderna te proporciona ou alija.
Voltando ao tema, e ao título, quando que minha pequena afro descendente pode ser um termo mais carinhoso que minha pretinha ou neguinha? Pode ser agressivo, pode no contexto, como a primeira expressão também... além do que na maioria das vezes teria que explicar que afro vem da África e aí todo o carinho encontra a parede da intelectualidade que, mais um exemplo, pode soar como arrogância ou aumentar a distância entre o diálogo e o afago.
Até onde meu pequeno homossexual (ou litle homo) vai abranger o que se quer dizer, numa conversa entre amigos, do que bichinha? Pode ser mais um gesto de ternura ou um preconceito, depende do tom de quem diz e de como quem escuta possa entender, mas a primeira definição não nos dá essa possibilidade, é apenas um homossexual de baixa estatura...
Chamar um cego de deficiente visual é uma tamanha miopia. Eu sou deficiente visual, está na minha carteira de habilitação, pois só posso dirigir um veículo utilizando-me de lentes corretoras (traduzindo, óculos com grau ou lentes de contato). Quem não enxerga é cego mesmo, e isto ouvi de um comediente que o é. Idoso ou velho, gordo ou obeso (por que magrão não tem conotação negativa?), aleijado ou portador de deficiência de locomoção e por aí vai. Daqui há pouco não poderemos chamar mais as mulheres de grávidas, mas de mulheres portadoras de um feto...
O politicamente correto nestes casos só está mascarando de hipocrisia uma situação já bem explícita, não resolve nenhum problema de discriminação ou preconceito, apenas dá um trato de photoshop na imagem que um tem do outro, da mesma maneira que a inquisição resolvia a pseudo falta de fé na idade média, queimando livros, pessoas e idéias.
Nós deveríamos usar o politicamente correto apenas, e tão somente, para uma classe de pessoas, que se sacrificam em prol da humanidade e dos mais necessitados, abrindo mão de sua vida privada para labutar pelos corredores do poder democrático. Politicamente correto deveria ser cobrado, isto sim, não só na época das eleições, mas em todo o mandato daqueles que a gente utilizou nosso precioso tempo para eleger.
É politicamente correto dar-se um aumento, na nem tão calada da noite, com índices absurdos de correção, encarecendo os cofres públicos em efeito cascata e tirando dinheiro de serviços essenciais? Os cofres e seios da pátria não secam jamais, pois somos vítimas da verdadeira derrama que nos tira muito e devolve míseros trocados.
É politicamente correto deixar a saúde pública em condições mais desumanas que os campos de concentração? A avó dos meus filhos precisa fazer uma cirurgia e o prazo que lhe deram é de quatro anos, como pode uma coisa dessas? É mais fácil comprar um automóvel neste tempo do que corrigir um problema que está debilitando uma pessoa?
É politicamente correto deixar remédios, comprados e muito bem pagos, perderem a validade nos depósitos do que fazê-los chegar a quem precisa, e quem não precisa de remédios neste País?
É politicamente correto deixar alunos sem material didático, obrigando-as a copiarem toda a lição, dia a dia, de livros velhos e defasados, sem a nova ortografia inclusive, em plena era digital? E isto veio ao conhecimento agora, por meio de uma matéria no Jornal da Record, embora já ocorra há anos em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. E o que acontece nos lugares mais afastados? Palmatória?
É politicamente correto estar respondendo processo, seja lá em que esfera, grau ou culpabilidade, e conseguir se candidatar, eleger-se, e pasmem, tomar posse? Porque os concursados, que estudam para entrar na carreira pública, precisam ter reputação ilibada e nenhuma pendega, por menor que seja, para tomar posse.
É politicamente correto disputar cargos no alto escalão em troca de votação favorável ao poder executivo, já que essa votação deveria representar o que o eleitorado aspira e necessita?
Politicamente correto deveriam ser os políticos, compre essa idéia, o resto é apenas gramática...

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edman izipetto

sábado, 11 de junho de 2011

À luz de velas

A mesa redonda tem uma toalha com desenhos em relevo, um arranjo de flores onde se destaca uma tulipa vermelha e flores diversas e coloridas. Ao centro um castiçal de prata empunha a vela, esculpida em espiral, esperando para ser acesa. Daquele ponto avista-se, de uma ampla janela, uma fileira de candelabros que seguem para o horizonte, com suas luzes opacas em forma de funil, delimitadas pela neblina - como um desenho em bico de pena - que torna a noite silenciosa e mística.
Chegamos ao lugar reservado, o maitre afasta a cadeira de madeira de lei para que a mulher possa se acomodar. Eu não espero, sento-me tão logo vejo a companheira devidamente instalada. Um isqueiro de metal acende a chama da vela e o cardápio nos é estendido. Após uma pergunta: "vão beber alguma coisa", pedimos uníssonos a carta de vinhos.
Após uma troca de olhares, sugestões de entrada, tabela de calorias, a defesa da matança de animais, e outras questões politicamente corretas demais, decidimos pelo spaghetti alle vongole, sem traumas, sem ferir suscetibilidades e apropriado para o momento (e depois dele). Um carpacio de salmão com endívias como entrada nos dá a folga necessária para que o zeloso, mas apressado maitre, nos deixe em paz com a nossa disputa pelo vinho, tinto pelo clima frio, branco para harmonizar o prato.
A chama dança, cigana, em torno do pavio e projeta as sombras das flores, como videntes lendo as linhas do tecido que cobre a mesa. Outros casais sussurram pelo ambiente, recriando outras danças nas velas que os acompanham: alguns valsam, outros salsareiam, mais ao centro percebe-se um flamenco e no outro extremo é possível distinguir um tango.Em poucos casos a trilha sonora já não toca, queima a parafina que escorre em lágrimas que congelam em estalagmites.
Concordamos em pedir um Mâcon-Vergisson, da Saumaize Michelin, safra 2008, um frescor e acidez típicos dos Chardonnays da Borgonha sem o excesso de madeira, que geralmente acompanha e tira a identidade da maioria desses vinhos. Ela arrisca em aceitar, pois não é fã desta uva, mas na primeira degustação sente todos os sabores e perfumes daquela região francesa. Nossa entrada também é servida, folhas crocantes e tenras com a textura do peixe defumado, azeite e alcaparras e um pouco de pecorino romano, muito pouco, para contrastar.
Nossos pratos chegam fumegantes. A fumaça dos dois se entrelaça na vela, roçando-se, subindo em kundalini até tornar-se uma. Nossos garfos enrolam a pasta, costurando projetos, tricotando idéias numa malha de promessas e vontades de cores diferentes, mas harmônicas, tecendo caminhadas e corrigindo alguns pontos que desataram na manta do relacionamento.
O perfume do azeite extra virgem com o alho afasta os pensamentos ruins; o sabor levemente picante do molusco acende os desejos que são externados lambendo-se, discreta e maliciosamente, a manteiga das conchas, num degustar de prazer e luxúria, como experientes adolescentes na primeira vez...
Nesta mistura de sabores o cenário lá fora desanuvia, um ar mediterrâneo descortina-se e a Lua descobre-se de seu véu em sua crescente caminhada para o oeste. Peras defumadas com queijo brie, e damascos secos cobertos de chocolate amargo, finalizam nosso paladar e gozo.
Nossos olhares se vêem, orbitando ao redor daquela luz trêmula, qual planetas em seus destinos distintos, elípticos, que se alinham quando as mãos se tocam e aninham, alterando as previsões astrológicas e catastróficas, recriando um novo mundo, renovando esse sentimento enamorado de se sentir completado e completando alguém.

Um ótimo domingo a todos
Edman Izipetto
12/06/2011

sábado, 4 de junho de 2011

Almoço num sábado frio

As pessoas são assim mesmo, ou se recolhem entrevadas em suas tocas "porque está muito frio para sair para qualquer lugar", ou apontam o nariz vermelho e renitente para a primeira esquina envidraçada.
Sábado, dia nacional dza feijoada e a temperatura em torno dos 15 - sensação térmica de 10º C - convidam aos corajosos, ou os que não tem muita opção mesmo.
Padaria de esquina, em frente outra padaria, ao lado um restaurante de grande porte, um dos vários de uma rota do ABC conhecida como "frango com polenta". A concorrência é a única aliada do consumidor, qualquer outra alternativa é pura dialética eleitoreira e demagógica.
Sempre há uma mesa com a turma do macacão, cuja maior disputa é a medida de suas supostas cinturas, uma gravidez masculina concebida a custa de muita cerveja, gordura saturada e o sedentarismo mórbido que deve minar a grande potência em breve. Seus pratos são verdadeiros Vesúvios incandescentes, fumacentos e prontos a entrar em erupção interna, levando o magma colesteriorino aos vales cardíacos e infartantes.
Uma mesa com o filho e o pai. Um parenteses neste fato. O filho com o pai sozinho, num almoço de sábado, é cumprimento judicial. Nenhuma mãe, em sã consciência, daria esta alforria se ainda estivesse comprometida com a paternidade. Matreira, ela sabe onde o ex está, esforçando-se ao máximo para compensar o filho de sua ausência inexpontânea, sabe que o rebento não corre perigo algum, e aproveita o tempo livre para fazer um download de suas necessidades mais básicas.
O pai pede fritas, arroz e iscas de carne acebolada, além de dividirem uma Coca 600 ml. Pagar pensão é um esfoliamento mensal, menstrual, que vai minando tuas finanças e auto estima. O filho, em torno dos 5 anos, não sabia o que eram fritas, e o pai não entende nada de nutricionismo.
Na mesa ao lado uma mulher, duas pré-adolescentes e seus indesconectáveis celularMP3, e uma garotinha, também em torno dos 5 anos. A mulher chegou primeiro, fez um prato de empreitada e devorou antes que as garotas sentassem. Ofereceu um nugget à menor, mas ela reclamou que havia uma manchinha escura. Devidamente "limpa", a menina mastigou aos poucos, como uma roedora. Balbuciou, em tom de ordem, alguma coisa à mulher, e esta foi buscar o prato: nuggets e spaghetti. Espero que não ocorra, para o bem dos filhos, um romance entre esta mãe e o pai da mesa em frente, ambos não sabem nutrir seus herdeiros com as vitaminas e sais minerais de uma boa conversa, seja em qualquer lugar que estejam, pois a distância entre estes adultos e as crianças que os acompanham era bem maior que o quarteirão que separa as outras opções de restaurante.
Embora estas duas situações deixaram-me pensativo, outra revoltou-me à gastrite: num casal um pouco mais distante da minha mesa, vi uma heresia para os meus padrões gastronômicos, por parte da mulher... Em três quartos do prato, a feijoada em toda a sua voluptuosidade, na outra parte, um spaghetti afogado em "su tinta", perguntando-se o que é que estava fazendo ali...
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edman izipetto
04/06/2011