sábado, 3 de outubro de 1987

Letras Negras

            A mãe preta abre seu peito ao sinhozinho. Muito mais que a sucção das primeiras proteínas pelo nascido, este contato é a troca e fusão de duas raças. Seu leite, muito certo que é, vem de um filho com seu senhor, será menino de brinquedos ou uma iniciante no jogo físico do amor.
            Nem tudo é romântico. Dois gênios da nossa literatura registram esses extremos: a escravidão como lembrança amarga e a possibilidade que ela nos deu de “na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra”.
            O autor das palavras acima tenta racionalmente mostrar o caminho, e outro, poeta, derrete as algemas físicas com o calor do seu lirismo. São eles Gilberto Freyre e Castro Alves. Este encarnando a própria liberdade, conhecido como “Poeta dos Escravos”, aquele deixando um marco na literatura por fundir elementos de história, antropologia e sociologia, esclarecendo muitos aspectos da formação do “caráter brasileiro”.
            Castro Alves tinha tudo para ser bem sucedido: origem familiar, situação financeira estável e possibilidade de estudar. Mas os atabaques quilombados clamavam uma voz condoreira: “A praça, a praça é do povo como o céu é do condor”.
            Casa Grande & Senzala, do ensaísta, é o ponto de referência para muitas correntes. Retrata a miscigenação como fator positivo, facilitada pela formação étnica do português, muito mais africana que européia, aliada à necessidade econômica de povoar o novo mundo, sem muita gente para fazê-lo e, inclusive, sofrendo escassez de mulher branca: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma... principalmente... a influência direta, ou vaga e remota, do africano”.
            “Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes?” pergunta o poeta acerca da escravidão, sentindo-se sempre incomodado por tudo que cheirasse laços ou chibatas. Seus versos têm raízes fincadas na liberdade das savanas. Sua obra é revolucionária no conteúdo e a sua vida confundiu-se entre as rimas:
“O século é grande...
No espaço
Há um drama de treva e luz
Como o Cristo – a liberdade
Sangra no poste da cruz”
A literatura negra no País existe também em sua forma convencional: feita por e para membros da raça. Entretanto é difícil identificá-la, pois destacando apenas umas das características da literatura “branca” brasileira, seu vocabulário, a influência é também africana ou africanizada, com expressões como dengo, cafuné, caçula, mandinga, moleque, cafajeste, bunda, catinga, tanga ou cachimbo.
Nosso momento mais rico, no qual se identifica este tema, é a época da escravidão, onde roubamos os gritos de dor que os troncos esconderam, ou os de prazer que as varas das camas segredaram. Numa literatura cicatrizada, as feridas internas explodem, em tempos, de um desejo ainda não satisfeito. Um coito obrigado, compactuado ou interrompido, um filho vendido ou escondido, uma música tirada das correntes, como se a prisão as tornassem afinadas.
Buscamos nossa identidade também literariamente. Talvez ela nos traga remorsos por sermos filhos ingratos, mas sincera, tornará a liberdade mais próxima. Teremos que assumir essa formação: o contraste do branco dos papéis com as letras negras.

Edman Izipetto
03/10/87