quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sob a garoa paulistana



Antes da civilidade, São Paulo era uma bacia hidrográfica protegida a leste pela Serra do Mar, e suas quaresmeiras, e a oeste pela Mantiqueira e os resquícios de araucárias. A peculiaridade de nascentes bem próximas ao litoral correndo para o interior ajudou na sua conquista. As corredeiras do Tamanduateí eram a via expressa de quem subia do litoral até o porto de Piratininga, parada obrigatória antes da viagem para os sertões. Muitas fogueiras foram acesas onde hoje o majestoso Mercadão distribui seus quitutes.
Das elevações secundárias, o maciço da Paulista dividia as chuvas entre o vale do Pinheiros e o do Anhangabaú. O sinuoso Pinheiros inundava toda várzea de seu nervoso trajeto formando um alagadiço em meio à Mata Atlântica, criadouro natural de peixes e o “ceagesp” dos animais de caça. O Anhangabaú, por sua vez, escorregava transparente entre pedras, escavando e separando o centro velho do centro novo, dois platôs repletos de ipês, jacarandás e manacás históricos.
Todos os rios, riachos, córregos e olhos d’água declinam para o Tietê. Os Bandeirantes usaram este rio para aumentar as fronteiras do então novo “continente”, na fúria cega de ouro, pedras preciosas e captura de indígenas. Os jesuítas os catequizavam e ambos, religiosos e exploradores, dizimaram os nativos à sua maneira, ensinando latim e espalhando sífilis numa guerra de bacamartes contra flechas.
Neste ambiente úmido, repleto de mosquitos, a névoa era tão densa que se precipitava na forma de garoa, presente o ano todo, independente da estação. As trilhas foram pavimentadas, as mulas trocadas por veículos – embora existam mulas conduzindo veículos – e o trem ajudou a temperar as palavras com fumaça e dialetos, ligando o porto de Santos à Luz.
A cidade foi crescendo às margens das águas, de costas para o mar, subindo as encostas e terraplanando a idéia de paraíso, como um grande porto a desembarcar os sonhos de migrantes e imigrantes. Das buchadas à macarronada, das esfihas aos sushis, da fruta pão às baguetes, a capital da pizza está encharcada de sabor e história que o grande rio insiste em levar para o Oeste.
Hoje muitos destes cursos d’água estão escondidos, talvez envergonhados pelas suas entranhas à mostra, saturados da diarréia insana do consumo e das palafitas feitas de cimento e descaso, que roubaram a ciliaridade de suas margens como placas de colesterol e trigliceris. Os rios de Sampa são sua artéria, as veias as avenidas. Tudo está entupido. Não há mais bandeirantes, mas a caça continua entre tribos de balas perdidas e suas pedras escuras cheias de loucura. Não há mais jesuítas, mas os “sacerdotes” de hoje, que não falam latim, continuam a querer catequizar e vender indulgências. A garoa de hoje é apenas a poeira tóxica da inversão térmica.

Sampa merece um futuro melhor.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade terá sido mera (ou quimera) coincidência.
Edman Izipetto
25/01/2013