Antes da civilidade, São Paulo era uma bacia hidrográfica
protegida a leste pela Serra do Mar, e suas quaresmeiras, e a oeste pela
Mantiqueira e os resquícios de araucárias. A peculiaridade de nascentes bem
próximas ao litoral correndo para o interior ajudou na sua conquista. As
corredeiras do Tamanduateí eram a via expressa de quem subia do litoral até o
porto de Piratininga, parada obrigatória antes da viagem para os sertões. Muitas
fogueiras foram acesas onde hoje o majestoso Mercadão distribui seus quitutes.
Das elevações secundárias, o maciço da Paulista dividia as
chuvas entre o vale do Pinheiros e o do Anhangabaú. O sinuoso Pinheiros
inundava toda várzea de seu nervoso trajeto formando um alagadiço em meio à
Mata Atlântica, criadouro natural de peixes e o “ceagesp” dos animais de caça. O
Anhangabaú, por sua vez, escorregava transparente entre pedras, escavando e
separando o centro velho do centro novo, dois platôs repletos de ipês,
jacarandás e manacás históricos.
Todos os rios, riachos, córregos e olhos d’água declinam
para o Tietê. Os Bandeirantes usaram este rio para aumentar as fronteiras do
então novo “continente”, na fúria cega de ouro, pedras preciosas e captura de
indígenas. Os jesuítas os catequizavam e ambos, religiosos e exploradores,
dizimaram os nativos à sua maneira, ensinando latim e espalhando sífilis numa
guerra de bacamartes contra flechas.
Neste ambiente úmido, repleto de mosquitos, a névoa era tão
densa que se precipitava na forma de garoa, presente o ano todo, independente
da estação. As trilhas foram pavimentadas, as mulas trocadas por veículos –
embora existam mulas conduzindo veículos – e o trem ajudou a temperar as
palavras com fumaça e dialetos, ligando o porto de Santos à Luz.
A cidade foi crescendo às margens das águas, de costas para
o mar, subindo as encostas e terraplanando a idéia de paraíso, como um grande
porto a desembarcar os sonhos de migrantes e imigrantes. Das buchadas à
macarronada, das esfihas aos sushis, da fruta pão às baguetes, a capital da
pizza está encharcada de sabor e história que o grande rio insiste em levar
para o Oeste.
Hoje muitos destes cursos d’água estão escondidos, talvez
envergonhados pelas suas entranhas à mostra, saturados da diarréia insana do
consumo e das palafitas feitas de cimento e descaso, que roubaram a ciliaridade
de suas margens como placas de colesterol e trigliceris. Os rios de Sampa são
sua artéria, as veias as avenidas. Tudo está entupido. Não há mais
bandeirantes, mas a caça continua entre tribos de balas perdidas e suas pedras
escuras cheias de loucura. Não há mais jesuítas, mas os “sacerdotes” de hoje,
que não falam latim, continuam a querer catequizar e vender indulgências. A
garoa de hoje é apenas a poeira tóxica da inversão térmica.
Sampa merece um futuro melhor.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a
realidade terá sido mera (ou quimera) coincidência.
Edman Izipetto
25/01/2013
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