terça-feira, 6 de janeiro de 2004

Sem pressa

           A noite ainda não escureceu completamente e a fila de faróis e lanternas é grande no caminho de volta para casa. Embora o período seja de férias para a maioria das pessoas, meu caminho é exatamente o das praias paulistas, e terei que conviver com “estrangeiros” que rumam para um período de torcida, torcida para que tenha sol. Carros abarrotados de famílias, e uma parte da casa delas, dividem com veículos pesados a intransitável Avenida dos Bandeirantes. Quem, como eu, está simplesmente voltando para casa, não esconde a pontinha de inveja de seguir direto e “vestir um calção de banho e tirar o dia para vadiar”.
Sem pressa de querer chegar, pois não acredito que a vida seja curta, resolvo parar num estacionamento de supermercado, ouvindo boa MPB e fumando um cachimbo. Não era intenção observar nada, era apenas para curtir a falta de pressa, já que o céu carrancudo escondia os astros e o vento forte anunciava que outra frente fria, neste verão paulistano, iria convidar para uma boa noite de sono.
Mas próximo dali uma senhora discute com alguém, tentando acomodar uma bicicleta recém adquirida num minúsculo Ford KA. Os sons da discórdia não chegam aos meus ouvidos, mas seus gestos enérgicos demonstram contrariedade, talvez arrependida pela impulsão da compra, quem sabe uma oferta tentadora ou a promessa do vendedor que a “magrela” caberia no carro. Lembrei da minha primeira bicicleta, presente dos anos 70 como prêmio pelo meu desempenho na escola. Era dobrável, verde e a batizei de Rosinha, não como lembrança de alguma garota – tinha dez anos e ainda não despertara para os mistérios do amor – mas em alusão a um livro, “Rosinha, minha canoa”, que povoara minha imaginação de criança. Enfim conseguiram colocá-la no espaçoso automóvel e a senhora pode ir embora, ainda que de cara amarrada.
Em frente estaciona um Xsara Picasso prata, todo torto na vaga, e um casal se despede. Bem vestida com um lenço, que parecia de seda, contornando o seu pescoço e caindo solto sobre a camisa de executiva, desce a mulher. É com alegria que deixa o carro e se dirige para um Gol estacionado próximo. O motorista do Xsara sai devagarzinho, acena e segue. A mulher também, cortando o estacionamento por entre as vagas. O que pode ter acontecido antes daquela despedida é pura especulação. Apenas uma gentileza, casualidade ou uma tarde de amor? Mas eu não queria observar nada...
Seguranças começam a cruzar com insistência onde estou. Estaria em atitude suspeita, à espreita? Solto longas e densas baforadas do meu Captain Black e o som alto do carro vibra. Começo a divagar sobre alguns porquês da minha existência, nada que vá resolver o enigma da vida, as escolhas que não fiz ou as oportunidades que deixei escapar, mas pensar a respeito é um sinal de sanidade e ajuda a não prestar atenção em nada. Faz bem para a pele.
Uma viatura da ronda escolar passa ao largo e imagino uma cena hilária, com os policiais solicitando-me, com a finesse que lhes é peculiar, para eu sair do carro e ser revistado. Perguntando sobre o conteúdo do cachimbo, sobre o motivo de estar parado, sozinho, em um estacionamento de supermercado, sem compras, ouvindo música alta e sem disfarçar um sorriso de satisfação por mais um dia cumprido. Talvez fosse uma afronta ficar parado, mesmo que por alguns instantes, numa cidade como São Paulo. Sorrio ainda mais da minha fantasia.
O fogo do cachimbo se apaga e a música não é das minhas preferidas. Hora de partir. A garoa vem confirmar que a fria frente chegou. A solidão, que insiste em me pedir carona nos últimos tempos, ameaça sentar-se ao meu lado no carro. Abaixo o volume do rádio e espanto a tristeza, imaginando um dedilhar de violão: “Ando devagar, porque já tive pressa e levo este sorriso porque já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe...”.

Edman
06/01/2004