terça-feira, 29 de abril de 2008

Tarde de Domingo

No céu paulistano a cor azul foi possível graças às “monções” de outono, varrendo o cinza e a poeira para outras dimensões. Um domingo atípico, onde o futebol, longe, é de apenas um time, a virada cultural levou de roldão outro tanto de interesse e muito, mas muito mesmo, das lentes curiosas estavam na RCC (reconstituição da cena do crime). No mais, béloo, o dia tava lindo...
Domingo este entre dois feriados, a turma se segura para desforrar-se com mais vagar. E o sol a pino, tinge de manchas verde-limão as mesinhas nas calçadas, entre cervejas e petiscos, os palmeirenses se preparam para uma decisão que não acontece há mais de 10 anos. Jogo no interior, resta os telões ou as tvs dos botecos para assistir com um arremedo de torcida. De aperitivo tem fórmula 1, Massa em segundo na tela, mas em primeiro nas mesas da torcida de descendentes de italianos, afinal a Ferrari é terra nostra...
E a overdose cultural, varando a noite como manda a  boemia, auxiliada pela estiagem e a bela noite de lua minguando, manteve as cabeças pensantes ocupadas e ocupou as cabeças vazias, ou bolsos parcos, com shows, exposições, demonstrações e pitadas de campanha eleitoral sem custos diretos, mas que já foram antecipadamente pagos pelos nossos IPTUs, IPVAs, IRs, ICMSs, e muitos “is” afiados na pedra de amolar quem produz. Ótimo seria que todos pudessem pagar pela arte e escolher o que querem ver, sem essa pantagruélica maneira de enfiar goela abaixo o que foi escolhido por terceiros...
Leio no dia seguinte “que poucos curiosos estiveram acompanhando os trabalhos da polícia... talvez pela ausência do casal...” Alimentemos a máquina devoradora de assuntos, ibope (pesquisa aponta que 98% de alguma coisa acompanham o caso). Alguém já vendeu os direitos autorais? Em que pese a tragédia, é uma bela história (mas beleza e tragédia têm parceria genética). É um caso que está tão óbvio que pode não ser verdade, pelo menos será nisso que os advogados de defesa irão se pautar: tudo não passa de indícios e provas testemunhais...
Nas colinas do Pacaembu a claridade é filtrada pelos vitrais da Faap, gerações de artistas traçam suas assinaturas pelo antigo e pelo novo, entre a tapeçaria marroquina e a arte interativa quântica, entre as jóias das morenas do norte da África e as areias tingidas do Tibet, entre os escritos minúsculos do Alcorão e a poesia que se projeta na parede e vira fumaça, pela beleza exótica e pra lá de Marrakesh e a tecnologia reinventada do caleidoscópio. A arte nasce nos bancos escolares e cresce, fermenta e alimenta como pão saindo das fornadas sob diversas formas e receitas.
Para quem soube aproveitar este domingo, com o que a natureza proporcionou, percebeu um azul pouco visto por aqui, ou um canto de pássaro pouco notado, ou até mesmo a brisa fresca em meio ao calor de verão da tarde. Agradeceu quando a temperatura baixou, tão longo o horizonte tornou-se laranja salpicando-se de pontinhos brilhantes e tingindo de cobre as nuvens que, por entender a cidade, passaram com a pressa da eminente segunda-feira.


Edman Izipetto
29/04/08

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Nos trilhos

            O trem subterrâneo tem no comando uma mulher, que deixou o almoço de domingo, (talvez filhos, netos, marido) as louças de visita e as conversas ao pé das xícaras e pires, para pilotar o elétrico de lá para cá dos paulistanos, vestidos “para a oração dominical”, ou até na pouca indumentária, caprichados do pisante ao gel porque hoje é domingo e o melhor meio de chegar em algum lugar é de metrô.
            Nossos ancestrais se apresentam, representados por um belo casal de negros, fortes, legítimos, coloridos, como que saídos dos confins do Congo ou de alguma aldeia das savanas. Com três filhos lindos, dois garotos dividindo uma bola e uma menina de chiquinhas, assumidos na negritude da alegria de andar livre com suas sandálias, bermudas e, na minha imaginação, lanças e estandartes da família real africana.
            No fundo do trem vazio um rapaz solitário arrisca umas notas. Tem nas mãos uma rosa vermelha, protegida por um cacho de pequenas flores amarelas, envoltas em filme transparente. Um buquê simples, humilde, mas ele ensaia algo com se estivesse decorando uma fala que está escrita em papel amassado. Tem o olhar meio perdido, algo embriagado, como se suas palavras cambaleassem pelo vagão em solavancos imaginários. Estaria de encontro à amada para pedir desculpas? Seu nervosismo sugere que, se não for o primeiro encontro, pode ser o último, mas há uma rosa na mão de “José” e ele se encontra só no fundo do trem outrora vazio. Antes de sair lança-nos um olhar de soslaio, que comentávamos sobre a figura, como se tivesse descoberto que o descobrimos. Ou usou nossa imagem de apaixonados para se inspirar na serenata futura...
            Ele sai por um lado, entra de outro uma jovem vestida de preto, carregando uma bexiga branca como a um mascote. Olhar perdido, pisa em meus pés e pede desculpas, o único momento de lucidez após sentar-se, largar-se e deixar o olhar a escorregar em caminhos pelas rachaduras do túnel, sem entrever o trilho paralelo e as estações seguintes. Os olhos como se lhe escapassem do osso orbital, inchasse e tomasse dimensões gigantescas do imaginário de voar cego, sem instrumentos, sem ipod, sem celular, é uma adolescente alienada das necessidades modernas.
No contraste entra outra jovem de preto, vestida para uma noite de deleites com roupas de dançarina noturna, falando alto, no salto agulha alto, pernas longas e sedentariamente gordas, meia-calça preta vazada e shorts curtos, tudo preto e cabelos tingidos de loiro, de uma cor berrante, acrílica e acidificante, surreal no derretimento dos poucos costumes que ainda resistem, seu destino não é o dos cânticos gospels ou gregorianos, nem mantras ou “taichis”, mas funk batidão da “peri”...
            A “motorneira” segue anunciando a próxima estação, o vagão continua a se ocupar enquanto um atrapalhado mochileiro tenta equilibrar suas coisas, colchonete, sleep bag, mala e um porta espada... Porta espada?!!! A cena hilária de arrumar uma coisa e cair outra só é interrompida pela voz da maquinista. Há sinais de luta na figura do rapaz, marcas de pancadas nos braços nus. Na etiqueta da mala uma cidade do Rio de Janeiro e no que parece uma espada de samurai as inscrições KIR e anagramas orientais.
            Finalmente um lugar vaga, ao meu lado, e ele consegue adestrar suas coisas junto ao corpo. Há alguns garotos vestidos de quimono azul e deduzo que é algum grupo de luta ou arte marcial, ele deve ser o mestre ou carregador mor (ou san?), pois nenhum dos garotos carrega tanta coisa além da própria bagagem. O fluminense, com sotaque, explica o significado da sigla – que eu não anotei e esqueci – e confirma minha suspeita de arte marcial. Na verdade é uma demonstração com espadas e uma simulação de luta com varas de bambu, o que justificava as marcas no rapaz.
            Em frente ao meu lugar uma conversa rola solta a algumas estações. Um senhor de faces sofridas vai desfiando uma história, sua própria história, e uma jovem o escuta atentamente (uma mulher ouvindo um homem, cada coisa estranha acontece neste trem...). Não ouço o conteúdo da conversa, mas a jovem, ao desembarcar, deixa uma nota de R$10,00 ao contador. Era um bom contador...

Edman Izipetto
03/04/08