sexta-feira, 30 de março de 2012

Outono das caminhadas

O dia mal ilumina e o senhor arranca-se da cama, arrebentando as linhas imaginárias tecidas durante a noite de sonhos adolescentes e limpando o suor da preguiça que cobre e salga de névoas a sua visão já debilitada. O cajado o espera na cabeceira - extensão dos seus horizontes já visitados - tremulando nas calejadas mãos cujo tempo marcou de vincas e manchas escuras.
A fumaça do café é um eterno “flash back”, remoçando suas vontades, despertando de vez a sedução noturna do sono eterno. A caminhada até o portão é o percorrer das estações, numa roleta russa sem saber qual delas vai abrir. O ferro range, emperra e reclama, não se sabe para espantar ou atrair, mas dá a idéia de uma abertura mais pesada do que a real.
A bengala é a primeira a sair da morada, em busca do pão de cada dia, a caminhada é um sinal de vida, embora nos mesmos lugares, os cenários vão se renovando com a experiência que seus ralos cabelos brancos teimam em revelar. O corpo esguio se curva ao peso das histórias, e cada passo é um folhear de livros de capa dura e páginas amareladas de tanto manuseio, ou esquecidas em prateleiras.
Os sapatos de bico fino com solado de couro competem com o surdo e contínuo eco da bengala, numa cadência de ruídos a 78 RPM no passeio público. É um gramofone quem cumprimenta conhecidos sem lembrança e desconhecidos rotineiros, ambos deixando dúvidas insanas numa memória já transbordando de reminiscências. Há passos de bailes lembrados em câimbras, alongados aqui e ali.
O idoso resmunga e ri, com a velocidade e sabedoria que a distância entre estas manifestações é a de uma moeda. Surfa no seu vinil, ondulando e cortando riscos, pois o caminho das pedras é seu GPS, embora ao seu redor pareça mais um lunático cambaleante e dependente.
Na metade do percurso as brumas caem, tirando as cores das referências, os sons do radar, iludindo as visões jovens a aguçadas. As calçadas e suas armadilhas não o surpreendem mais, nem assustam. Ele segue no seu tato e, dentro do seu trato, se desfaz no horizonte em busca de outra estação.

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