Acordei numa manhã de sexta-feira, quente mesmo no inverno, seca como um couro de criação colado nos ossos, e uma sensação estranha na mão esquerda: ela mexia mas não pegava.
Achei que tivesse dormido em cima, já fiz a proeza uma vez, não dei bola e toquei o dia no desequilíbrio da direita.
Acordo sábado pior. Ligo o sinal de alerta, falo com a mulher pelo telefone, não moramos juntos, e lá vou a pé para a UPA, pois não dava para dirigir, com meus tênis brancos de sessão espírita, pois o de caminhar tinha feito bolhas dias antes . Eu só no terror de algo pior.
A primeira pergunta da moça da triagem: o senhor tem histórico de AVC? Não, mas tenho uma intuição de que se eu partir naturalmente dessa para a outra, será dessa maneira.
Ela pediu para erguer a perna esquerda, sorrir!?!, piscar os olhos... catso vai pedir para eu bater palmas como um leão marinho também. Tirou a pressão, histórico de doenças, alergia e aguardar.
Unidade cheia de gente e de mosquitos. Esses parecendo os aviões kamikazes da segunda guerra, com rasantes. Venha para a unidade de saúde e leve a chance de pegar dengue.
Enquanto eu aguardava, veio a idéia de preparar meu epitáfio, já que vou morrer mesmo, pelo menos crio um ritual particular e uma atração à parte para não ter um velório vazio.
Sem símbolos religiosos, flores só em vasos, nada de coroas que não passam de plantas mortas querendo roubar meu protagonismo. E, principalmente, uma garrafa de Espírito de Minas para comemorar minha passagem. E um conjunto de chorinho viria bem a calhar.
Quero ir vestido com a camisa do Palestra Itália e um velho calção de banho, já que para onde vou é quente. Também meu chapéu comprado numa esticadinha até Embu das artes.
Pensando em Deus, vou ter uma conversinha olho no olho. Agora que a libido voltou veio me chamar, qualé Véio, este tipo de acordo, até onde sei é do outro.
Serei cremado sob o som de Caxangá, nas vozes divinas de Elis e Milton Nascimento. E se der tempo, Vida de Viajante com os dois Gonzagas.
Minhas cinzas serão jogadas nas nascentes do Rio Tietê, em Salesópolis, pois de pirraça quero que o Caronte atravesse todo o estado numa última viagem.
Enquanto isso, um cego inquieto transita frenético, com sua bengala elétrica emitindo sons de uma AR15, para desespero de sua acompanhante. A minha frente a filha, nervosa e sem paciência, discute com a mãe, serena e a razão de estarem lá.
De repente, olho na parte oculta do meu braço esquerdo e vejo uma vermelhidão. (música de suspense toca na minha cabeça junto ao barulho que os computadores antigos faziam ao se conectar com a internet discada).
Tinha esbarrado nas folhas anteontem, sem estar de manga comprida, pois estava um calor arretado, tentando fazer uma ligação hidráulica para funcionar a lava louça, mas isto é assunto para outra história.
Avisei a mulher e a irmã, para tirar a preocupação, pois eu estava com alergia e ia facilitar para o médico. Dito e feito, não sem um drama
O médico estava no fundo do consultório, mal olhou em mim, e eu contando tudo o que agora escrevi e ele escrevendo no computador. É alergia, diagnosticou e, entre os remédios receitou Dipirona.
Eu perguntei para o Dr.
- o Sr quer terminar o que o inseto começou?
- o quê?
- Sou alérgico a Dipirona
- como assim
- ela abaixa minha pressão
- ela abaixa a pressão de todo mundo, mas vou trocar
Rasgou a impressão como se fosse a última e perguntou se eu queria tomar medicação ali. Lógico que sim é injeção, quem não gosta de uma picadinha num sábado à tarde.
Após mais uma espera saí de lá, mancando por conta da bolha no pé esquerdo, o joelho resolveu pinçar, também esquerdo, a mão querendo paralisar com um dedo em riste e a bunda, que eu não tenho, dolorida por duas injeções.
Baseado em fatos reais vividos pelo autor
Ressuscitei o blog
Essa foi a saideira
Edman
21/09/2024