quinta-feira, 3 de abril de 2008

Nos trilhos

            O trem subterrâneo tem no comando uma mulher, que deixou o almoço de domingo, (talvez filhos, netos, marido) as louças de visita e as conversas ao pé das xícaras e pires, para pilotar o elétrico de lá para cá dos paulistanos, vestidos “para a oração dominical”, ou até na pouca indumentária, caprichados do pisante ao gel porque hoje é domingo e o melhor meio de chegar em algum lugar é de metrô.
            Nossos ancestrais se apresentam, representados por um belo casal de negros, fortes, legítimos, coloridos, como que saídos dos confins do Congo ou de alguma aldeia das savanas. Com três filhos lindos, dois garotos dividindo uma bola e uma menina de chiquinhas, assumidos na negritude da alegria de andar livre com suas sandálias, bermudas e, na minha imaginação, lanças e estandartes da família real africana.
            No fundo do trem vazio um rapaz solitário arrisca umas notas. Tem nas mãos uma rosa vermelha, protegida por um cacho de pequenas flores amarelas, envoltas em filme transparente. Um buquê simples, humilde, mas ele ensaia algo com se estivesse decorando uma fala que está escrita em papel amassado. Tem o olhar meio perdido, algo embriagado, como se suas palavras cambaleassem pelo vagão em solavancos imaginários. Estaria de encontro à amada para pedir desculpas? Seu nervosismo sugere que, se não for o primeiro encontro, pode ser o último, mas há uma rosa na mão de “José” e ele se encontra só no fundo do trem outrora vazio. Antes de sair lança-nos um olhar de soslaio, que comentávamos sobre a figura, como se tivesse descoberto que o descobrimos. Ou usou nossa imagem de apaixonados para se inspirar na serenata futura...
            Ele sai por um lado, entra de outro uma jovem vestida de preto, carregando uma bexiga branca como a um mascote. Olhar perdido, pisa em meus pés e pede desculpas, o único momento de lucidez após sentar-se, largar-se e deixar o olhar a escorregar em caminhos pelas rachaduras do túnel, sem entrever o trilho paralelo e as estações seguintes. Os olhos como se lhe escapassem do osso orbital, inchasse e tomasse dimensões gigantescas do imaginário de voar cego, sem instrumentos, sem ipod, sem celular, é uma adolescente alienada das necessidades modernas.
No contraste entra outra jovem de preto, vestida para uma noite de deleites com roupas de dançarina noturna, falando alto, no salto agulha alto, pernas longas e sedentariamente gordas, meia-calça preta vazada e shorts curtos, tudo preto e cabelos tingidos de loiro, de uma cor berrante, acrílica e acidificante, surreal no derretimento dos poucos costumes que ainda resistem, seu destino não é o dos cânticos gospels ou gregorianos, nem mantras ou “taichis”, mas funk batidão da “peri”...
            A “motorneira” segue anunciando a próxima estação, o vagão continua a se ocupar enquanto um atrapalhado mochileiro tenta equilibrar suas coisas, colchonete, sleep bag, mala e um porta espada... Porta espada?!!! A cena hilária de arrumar uma coisa e cair outra só é interrompida pela voz da maquinista. Há sinais de luta na figura do rapaz, marcas de pancadas nos braços nus. Na etiqueta da mala uma cidade do Rio de Janeiro e no que parece uma espada de samurai as inscrições KIR e anagramas orientais.
            Finalmente um lugar vaga, ao meu lado, e ele consegue adestrar suas coisas junto ao corpo. Há alguns garotos vestidos de quimono azul e deduzo que é algum grupo de luta ou arte marcial, ele deve ser o mestre ou carregador mor (ou san?), pois nenhum dos garotos carrega tanta coisa além da própria bagagem. O fluminense, com sotaque, explica o significado da sigla – que eu não anotei e esqueci – e confirma minha suspeita de arte marcial. Na verdade é uma demonstração com espadas e uma simulação de luta com varas de bambu, o que justificava as marcas no rapaz.
            Em frente ao meu lugar uma conversa rola solta a algumas estações. Um senhor de faces sofridas vai desfiando uma história, sua própria história, e uma jovem o escuta atentamente (uma mulher ouvindo um homem, cada coisa estranha acontece neste trem...). Não ouço o conteúdo da conversa, mas a jovem, ao desembarcar, deixa uma nota de R$10,00 ao contador. Era um bom contador...

Edman Izipetto
03/04/08

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